Público


Esta rua podia chamar-se " Rua da Poesia"
As palavras de Cesariny ou de Eugénio de Andrade dão o mote a uma artéria onde há bares, restaurantes, artesanato português e muita cultura despretensiosa.

Não se sabe bem como, mas o vírus da poesia parece ter contagiado toda a Rua Nova da Alfândega. Senão, vejamos: aqui temos o Clube Literário do Porto, onde há vários eventos ligados à arte de fazer versos, e as noites poéticas do bar Púcaros e do Clube das Avós. Para além disso, o café Porto Rosa e a loja de artesanato português Coração Habitado devem pelo menos o nome à poesia. Antes que o portuense mais atento comece a abanar a cabeça com um ar reprovador, assumimos a batota: neste texto, "anexamos" a Rua de Miragaia e o Largo da Alfândega. Não nos parece nada disparatado: foi a abertura da Rua Nova da Alfândega (entre 1869 e 1871), necessária para a ligação do edifício ao centro da cidade, que desenhou a actual configuração da Rua de Miragaia. Agora, é uma espécie de cave, amparada por um muro e dividida a meio pelo Largo da Alfândega.
A área geográfica aqui abordada, dividida entre as freguesias de São Nicolau e de Miragaia, é uma das mais rústicas da cidade e mantém um ambiente de bairro. "Ainda se ouvem as mães à janela a chamar os miúdos", nota Maria Inês Castanheira, programadora do Clube Literário do Porto. São esses mesmos miúdos que andam pendurados no eléctrico da Linha 1 - "o condutor até pára o veículo para lhes ralhar" - e que descem a vizinha Rua do Comércio do Porto de bicicleta, a alta velocidade, sem muita preocupação pelos transeuntes. Jorge Andrade, proprietário do atelier de escultura e cerâmica Arcos de Miragaia, prefere destacar que os habitantes são "pobres, mas solidários". No seu espaço, recebe crianças da zona ou dos problemáticos bairros do Aleixo e do Lagarteiro, especialmente durante o Verão, e também vende as suas obras, a partir de 10 euros. Até 2001, Jorge Andrade nunca tinha modelado uma única peça, mas um curso desenvolvido no âmbito da extinta Fundação para o Desenvolvimento da Zona Histórica do Porto despertou-lhe a curiosidade. No entanto, confessa que é o único dos 16 alunos, com "problemas de droga e marginalidade", que "sobreviveu" com os ensinamentos daí retirados. As suas curiosas e despretensiosas criações justificam uma visita.

A tertúlia mais antiga

Mas retomemos o tema principal, a poesia, pelo exemplo do Clube Literário do Porto. Pertença da Fundação Luís Araújo, e inaugurado em 2005, este é um espaço multifuncional que combina livraria, piano-bar, duas galerias, auditório e uma agenda cultural diversificada e de entrada gratuita. Às sextas e sábados à noite, há música clássica ou jazz e os eventos poéticos permanentes são mensais: a tertúlia Quartas mal ditas, na última semana de cada mês, e Poesia de choque. Nestes eventos, cruzam-se alguns dos nomes que fazem a mais famosa noite de poesia do Porto: é no bar Púcaros, nas arcadas da Rua de Miragaia, e dá-se religiosamente às quartas-feiras, depois do toque de uma sineta, para lá das 23h00. De acordo com o proprietário, Carlos Pinto, trata-se da "tertúlia poética ininterrupta mais antiga da cidade", levando já 12 anos. Os novatos que queiram declamar são sempre bem-vindos. Para ajudar a descontrair, o ex libris é a sangria, servida nos púcaros que dão o nome à casa. Para terminar, há o Clube das Avós, que na primeira sexta-feira de cada mês organiza sessões de poesia, na Junta de Freguesia de São Nicolau. O evento é aberto ao público em geral.
Mas a torrente poética não acaba aqui. O café Porto Rosa, no Largo da Alfândega, tem nos vidros dois dos versos mais famosos de Mário Cesariny: "Queria de ti um país de bondade e de bruma/ queria de ti o mar de uma rosa de espuma". Lá dentro, há serviço de cafetaria e pratos do dia, com alguma sofisticação, ao almoço. Perto do Clube Literário, temos a Corações Habitados, designação inspirada no poema Coração Habitado, de Eugénio de Andrade. A proprietária, Isabel Dores, fez uma pesquisa por todo o país, em busca de objectos de artesão portugueses, desde os tradicionais aos mais urbanos. Aqui há livros, produtos gourmet, vestuário e sabonetes da Ach. Brito ou Confiança.
O Rádio Bar é uma alternativa no capítulo da noite. É um sítio pequeno, com paredes de pedra, calmo durante a semana, animado e mais electrónico nas noites de sexta-feira e sábado. O Giroflée, no número 1 da rua, é o espaço de restauração mais requintado das redondezas, sem ter um preço exorbitante (uma média de 20 euros por pessoa). A cozinha é de raiz portuguesa, mas com uma apresentação contemporânea. Se estiver numa de tapas, o La Pausa, uns passos à frente, é mais económico.
Falta falar do edifício que dá o nome à rua: a Alfandega Nova, construída sobre estacaria no antigo areal de Miragaia, e inaugurada em 1869. Em 1993, foi restaurada para instalar o Museu dos Transportes e Comunicações, de acordo com um projecto do arquitecto Souto Moura. Por 3 euros, é possível visitar duas exposições permanentes (O Automóvel no Espaço e no Tempo e o Museu das Alfândegas) e a temporária Duas Arquitecturas Alemãs: 1949-1989, até 5 de Fevereiro. Aqui também há uma bela e pouco conhecida biblioteca, onde é possível estudar com o rio Douro como pano de fundo."

[Artigo de José Pedro Barros]
jan. 2009